sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Considerações sobre o livro I da Ética a Nicômaco de Aristóteles

Profa. Rosani K. Cunha (Professora do Curso de Licenciatura em Filosofia PUCPR)

Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu em Estagira e é considerado também um historiador e sistematizador de todo o pensamento grego anterior. Seu espírito enciclopédico o fez produzir uma obra monumental. Entre as várias áreas do conhecimento desenvolvidas por Aristóteles sob o princípio racional (metafísica, biologia, lógica, política, arte, entre outros) está a Ética, tema exposto nos seus livros intitulados Ética a Nicômaco, Ética a Eudemo e a Grande Ética.  Interessa-nos aqui a Ética a Nicômaco com o objetivo de expor os pontos decisivos a propósito da ética, ou seja, aquela que diz respeito a melhor forma de viver e agir, adquirida pelo uso correto da razão. A Ética a Nicômaco apresenta o tema em 10 livros, sendo que cada um deles está subdividido entre 9 e 14 capítulos,  nos quais discute o objeto de estudo da ética, vale dizer, as seguintes questões: O que é ser feliz? Como viver bem?
 No livro 1 da Ética a Nicômaco, Aristóteles tem como ponto de partida para essas estas interrogações, a explicação sobre a natureza da felicidade e, no decorrer da obra, nos deixa uma  análise do que entende por Eudaimonia, ou seja , a Felicidade Perfeita ou Sumo Bem, que é o verdadeiro sentido da vida, e,  só é possível no exercício da atividade contemplativa, proporcionada por uma vida em que as finalidades últimas de cada ação sejam atingidas, em resumo, uma vida virtuosa. No livro 1 da ética a Nicômaco , o filósofo apresenta sua tese na afirmativa de que “A felicidade é uma atividade da alma conforme a virtude perfeita”. (A Ética Nicomaquéia, I, 13 1102 b5), portanto, neste livro se discute a relação entre felicidade e virtude.
Para compreender esta tese é preciso refletir sobre a função do homem, visto que Aristóteles admite que para toda arte, investigação, e, sobretudo,  para toda a ação e toda a escolha existe uma finalidade última, o que ele chamou de Bem,  quando disse que “o bem é aquilo a que todas as coisas tendem” (A Ética a Nicômaco, I, 1 1094 a5), Mas qual será o bem que o homem almeja  como fim último de sua vida? A felicidade!Mas no  que acreditam consistir a felicidade ? Será o  prazer, a honra, a   riqueza? Segundo o filósofo, identificar estas conquistas com felicidade, embora tenha um certo fundamento,  é próprio do tipo mais vulgar de homem, pois o prazer pode torná-lo, por exemplo,escravo dos vícios; a honra que é a finalidade da vida política, é superficial para ser o fim último, pois como disse o filósofo, “depende mais de quem a confere do que de quem recebe”( I, 5 1095 20a), logo não é um bem próprio do homem, inclusive ele pode perdê-la. Quanto a riqueza, afirma que “é algo útil e nada mais, e ambicionado no interesse de outra coisa” ( I, 5 1096 10a), portanto, prazer, honra e riqueza não são bem último dos homens , ou seja, um bem universal  para o qual todas as outras coisas se fazem,  pois   a felicidade é buscada  sempre por si mesma e nunca com vistas a outras coisas, como diz o filósofo “ A felicidade é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação” ( I, 7 1097 20b). 
Aristóteles acredita que o homem feliz é aquele que vive bem e age bem, assim entende-se que a felicidade pode ser conquistada por meio de ações refletidas,  estudadas  e mediadas pelo uso da razão sobre as paixões. Uma ação nessas condições é virtuosa, logo, percebe-se a relação intrínseca entre virtude e felicidade e, ainda, que são próprias da atividade da alma humana. Portanto, para compreendermos em que consiste  a felicidade, é necessário entender a virtude  sob   a concepção de alma trazida pelo filósofo[1].Segundo Aristóteles, a alma tem uma parte racional e outra parte privada de razão  e que se divide em duas outras partes, uma de natureza vegetativa (faculdade que busca a nutrição, que comum a todas as espécies) e  outra também irracional , a parte sensitiva ou apetitiva  da alma, responsável por nossos impulsos, nossas vontades desejos, que tende a nos levar para ações viciosas, mas que pode ser persuadida pelo elemento racional e obedecer-lhe e levar o homem  a agir bem, e viver bem, pois  o efeito da sua ação lhe será  aprazível permanentemente. Aristóteles explica que esta tese que consiste em dizer que o ser humano alcança a felicidade quando consegue agir nas situações em que é impulsionado pelos sentimentos e paixões que lhe são relativos, segundo o critério do justo meio, ou seja, ação mediana, de equilíbrios   entre extremos como falta e excesso, considerados vícios   vale dizer, ações  que tendem para  um resultado negativo tanto para o sujeito da ação como para seu meio, portanto virtude seria o oposto dos vícios.
 Assim, para desenvolver e adquirir as virtudes que constituem o conteúdo da felicidade é necessário que o elemento racional da alma humana   controle o elemento irracional  característico da parte apetitiva da alma. Esse empreendimento requer sabedoria prática, aquela adquirida com vivências refletidas e aperfeiçoada com o hábito. Nesse sentido é que o filósofo traz no livro I da ética a Nicômaco,  a menção a Hesíodo:
Ótimo é aquele que de si mesmo conhece todas as coisas;
Bom, o que escuta os conselhos dos homens judiciosos.
Mas o que por si não pensa, nem acolhe a sabedoria alheia,
Esse é, em verdade, uma criatura inútil
(Hesíodo, trabalhos e Dias,293 ss, in.A Ética Nicomaquéia, 1, 1095 b 10)

           


[1] Giovanni Reale ao comentar a obra aristotélica observa que “(...) qualquer ulterior aprofundamento no conceito de ‘virtude’ depende de um aprofundamento do conceito de alma. (...) a alma se divide, segundo Aristóteles, em três partes, duas irracionais, isto é, alma vegetativa e a alma sensitiva, e uma racional, a alma intelectiva. E dado que cada uma dessas partes tem a sua atividade peculiar, cada uma tem uma peculiar virtude ou excelência. Todavia a virtude Humana só é aquela na qual entra a atividade da razão. De fato, a alma vegetativa é comum a todos os viventes. (REALE, 1994, p.412).

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O LIVRO X DA REPÚBLICA: UMA QUESTÃO MORAL

             Juliano Orlandi (professor do Curso de Filosofia PUCPR)


Tradicionalmente o Livro X da República é lembrado pela dura crítica que dirige aos poetas e à arte em geral. Aos olhos modernos, parece bastante estranho que um escritor como Platão, dotado de uma capacidade literária ímpar, defenda a expulsão da poesia de sua cidade ideal. O que nos choca é justamente o fato de que possuímos uma opinião absolutamente contrária: a arte, para nós, vale como algo que amplia e aprofunda nossa compreensão da realidade. Surpresos, então, perguntamos: por que Platão considera a arte e a poesia como coisas nocivas e dispensáveis?

O filósofo ateniense, lançando mão de sua teoria das ideias ou formas, nos responde: a poesia está a três pontos da verdade. Suas obras são imitações imperfeitas de objetos particulares que são, por sua vez, cópias igualmente imperfeitas das idéias ou formas. Existem, assim, retrospectivamente o nível inteligível, que se caracteriza por conter objetos universais e atemporais, o nível sensível, que contém objetos particulares utilizados na vida cotidiana e, finalmente, o nível artístico, que contém imagens imperfeitas dos objetos sensíveis. No exemplo platônico, temos a mesa ideal, que determina todas as particulares, as mesas sensíveis, que são utilizadas cotidianamente, e as mesas representadas pelos artistas, que não determinam as outras e não servem aos mesmos propósitos que as mesas particulares. De acordo com este argumento, as produções artísticas estão distanciadas da verdade universal das ideias ou formas e, por isso, representam coisas menores e insignificantes no pensamento platônico.

Ora, reconhecer que as obras de arte estão distantes da verdade das ideias não basta, contudo, para expulsá-las da cidade ideal. Afinal, o que na maior parte das vezes nos chama atenção nas produções artísticas é justamente seu aspecto fantasioso. Compreendemos, assim, que a “mentira” ou “engano” da arte não são simplesmente negativos, mas contém algo de positivo que pode despertar novas percepções da realidade. Ao representar cenas bíblicas, por exemplo, as pinturas medievais “fantasiam” a aparência das personagens e apresentam uma intenção de propagar a fé cristã. O fato de que as representações são “mentirosas” não faz a menor diferença para avaliar o conteúdo das obras. Por que, então, Platão é tão rigoroso com a arte e a expulsa da cidade ideal simplesmente por estar afastada da verdade?

A chave da questão se encontra no papel central que a poesia exerce na educação dos gregos antigos. Diferente das nossas produções poéticas, as obras de Homero são utilizadas na educação dos jovens e constituem o padrão moral na Grécia de Platão. Sua origem está ligada a um contexto em que ainda não havia escrita e, por isso, pertencem ao domínio da oralidade. Este fator é absolutamente decisivo para determinar o conteúdo e os limites da poesia homérica. Assim, Platão expulsa as produções poéticas não simplesmente porque elas expressam coisas distantes da verdade, mas principalmente porque a poesia que ele conhece tem a pretensão de estabelecer os critérios morais dos gregos antigos. Esses critérios, afirma o filósofo ateniense, se encontram no domínio das ideias ou formas e, por essa razão, tentar estabelecê-los por outro meio que não o filosófico recai necessariamente em erros. Platão não reconhece qualquer poesia diferente desta e, então, se obriga a expulsá-la de sua cidade ideal. Compreender sua crítica aos poetas depende, por conseguinte, de dois pontos fundamentais: sua teoria das ideias ou formas e sua perspectiva do papel da poesia na Grécia antiga.